segunda-feira, julho 30, 2007

EROS E PSIQUE - FERNANDO PESSOA







Eros e Psique




Conta a lenda que dormia



Uma Princesa encantada



A quem só despertaria



Um Infante, que viria



De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,



Antes que, já libertado,



Deixasse o caminho errado



Por o que à Princesa vem.




A Princesa Adormecida,



Se espera, dormindo espera,



Sonha em morte a sua vida,



E orna-lhe a fronte esquecida,



Verde, uma grinalda de hera.




Longe o Infante, esforçado,



Sem saber que intuito tem,



Rompe o caminho fadado,Ele dela é ignorado,



Ela para ele é ninguém.




Mas cada um cumpre o Destino



Ela dormindo encantada,



Ele buscando-a sem tino



Pelo processo divinoQue faz existir a estrada.




E, se bem que seja obscuro



Tudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,



E vencendo estrada e muro,



Chega onde em sono ela mora,




E, inda tonto do que houvera,



À cabeça, em maresia,Ergue a mão, e encontra hera,



E vê que ele mesmo era



A Princesa que dormia.




Fernando Pessoa









Encomenda de Bonecas de Orixas.http://jorgedoxumkare.gigafoto.com.br/



EU VOU TE CONTAR...


Encomenda de Bonecas de Orixas.http://jorgedoxumkare.gigafoto.com.br/

Eu vou te contar
Eu vou te contar que você não me conhece...
E eu tenho que gritar isso porque você está surda e não me ouve!
A sedução me escraviza à você ...
Ao fim de tudo você permanece comigo, mais presa ao que eu criei e não a mim .
E quanto mais falo sobre a verdade inteira um abismo maior nos separa ....
Você não tem um nome , eu tenho...
Você é um rosto na multidão , e eu sou o centro das atenções ,
Mas a mentira da aparência do que eu sou , é a mentira da aparência do que você é .
Por que eu , eu não sou o meu nome, e você não é ninguém ...
O jogo perigoso que eu pratico aqui , ela busca a chegar ao limite possível da aproximação. Através da aceitação , da distância , e do reconhecimento dela.
Entre eu e você existe a notícia que nos separa ...
Eu quero que você me veja nua , eu me dispo da notícia.
E a minha nudez parada , te denuncia , e te espelha...
Eu me relato , tu me delatas...
Eu nos acuso , e confesso por nós. Assim , me livro das palavras,
Com as quais você me veste .

Fauz Araup
Encomenda de Bonecas de Orixas.http://jorgedoxumkare.gigafoto.com.br/








Cântico negro
José Régio



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...Se ao que busco saber nenhum de vós responde






Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,Redemoinhar aos ventos,Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,A ir por aí...

Se vim ao mundo, foiSó para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes pátria, tendes tetos,E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vouS
SÓ Sei que não vou por aí!







José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.